sábado, 17 de abril de 2010

Os pontos de cultura: um novo léxico para uma política dos pobres e do amor!

por Giuseppe Cocco

Com o tema “Tambores Digitais”, Fortaleza é sede da Teia entre 25 e 31 deste mês

As ações dos Pontos de Cultura desenvolvida no âmbito do Programa Cultura Viva na estão do Secretário Célio Turino (no MinC dos ministros Gilberto Gil e Juca Ferreira) constitui uma das políticas públicas mais interessantes e potentes dos governos Lula (2003-2010) e, por definição, uma referência obrigatória para as políticas de radicalização democrática na América do Sul e, mais em geral, no âmbito dos movimentos de democratização da globalização.
Vários são os elementos da política dos Pontos de Cultura que indicam suas dimensões inovadoras e potentes. Os que nos parecem mais expressivos são os seguintes:
1) Trata-se de uma política de radicalização democrática, pensada e implementada para funcionar de maneira radicalmente horizontal: de baixo para … baixo (e não para cima!). O “fundo público” é mobilizado por meio de um mecanismo de editais (de concursos públicos) que não visa fomentar e/ou produzir “cultura” segundo prioridades governamentais, mas reconhecer a produção cultural que já existe. Por meio desse mecanismo, os recursos mobilizados pelo MinC são postos à disposição dos movimentos culturais (que se constituem como Pontos e como redes de Pontos – por meio dos “Pontões”) para que eles possam dar continuidade e estabilidade às suas próprias dinâmicas de criação.
2) Assim, a política dos Pontos de Cultura apreende a produção cultural a partir da dinâmica dos movimentos culturais. A política dos “Pontos de Cultura” evita ao mesmo tempo a reprodução da cultura elitista, bem como sua variável especular e espetacular da cultura de massa. Contudo, ele evita também as armadilhas ideológicas do “popular”. Reconhecendo a produção cultural que já existe na sociedade, o MinC operou uma inflexão política de grande porte: a democratização não apenas acontece pela definição de um marco público e transparente de política cultural (o que já seria um grande avanço), mas também pela abertura às dinâmicas de criação que são também o fato dos movimentos de resistência: é nesse sentido que o programa no qual se inscreve a Ação dos Pontos de Cultura não poderia ser mais adequado: Cultura Viva versus a hegemonia da cultura morta da espetacularização erudita e versus as identidades homogêneas de um “popular”, supostamente contra-hegemônico. O programa funciona também como espaço de construção de redes dos movimentos culturais e pontos de cultura entre si. A rede virtual se atualiza nas atividades dos Pontões e, pelo menos uma vez por ano, nos encontros da Teia e outros seminários e encontros, o debate político e teórico é completamente atravessado pela própria dinâmica da produção cultural: os encontro são eventos, multiformances de resistência e criação.
3) Os Pontos de Cultura funcionam como referências para as políticas de radicalização democrática em geral: por isso eles viraram referência no caso do Fórum de Mídia Livre onde foi lançada a proposta dos Pontos de Mídia Livre que, em seguida, tornou-se uma ação do próprio MinC. A política dos Pontos de Cultura pode tornar-se uma referência geral para as políticas de mobilização produtivas dos territórios, inclusive no que diz respeito à luta pelo reconhecimento e a proteção dos trabalhadores informais das grandes metrópoles brasileiras.
Diante da riqueza da experiência e do enorme potencial que ela contém, precisamos apontar para os desafios de sua consolidação e seu desenvolvimento. Podemos resumir estes desafios em duas grandes linhas: a consolidação da ação e, pois, sua permanência na forma de Lei (de Estado); o desdobramento político e conceitual da ação dos pontos de cultura para que ela vire uma referencia geral.
No que diz respeito à consolidação, nos parece que a transformação da ação em Lei e a “estadualização” dos editais constituem dois momentos adequados para fazer com que os novos governos se sintam comprometido a lhe dar uma continuidade adequada. Da mesma maneira, o fato que os Pontos de Cultura tenham se tornado a base de uma medida parecida voltada ao MERCOSUL e se pense neles em outros países só pode reforçar as perspectivas de continuidade para além dos “ciclos políticos”. Contudo, nos parece que a formulação desse objetivo (correto) de transformação dos Pontos em uma “política de Estado” está repleta de ambigüidades e paradoxos: em primeiro lugar, porque corre-se o risco de – visando a continuidade – “corromper” a própria dimensão política da proposta, ou seja, esvaziar e reduzir uma das características fundamentais dessa ação: a de ser uma política de radicalização democrática (horizontal) e não uma política de Estado (necessariamente vertical). Em segundo lugar – e de maneira complementar – acaba se atribuindo ao Estado (e, o que é pior, legitimando) uma dimensão transcendente da qual derivaria a continuidade de uma política cuja dimensão inovadora está – ao contrário – em reduzir essa dimensão soberana (separada) da política. Nesse segundo caso, a invocação de uma “política de Estado” é duplamente contraditória: por um lado, afirma-se que o Estado tem um funcionamento mais público do que os governos quando a própria experiência do governo Lula indica o contrário (vide a crise de final de 2009, com as ameaças de demissões da cúpula militar para impedir a publicação do Decreto do Governo para a instituição de uma Comissão da Verdade) ou seja, o desafio continua sendo e será aquele da democratização do Estado, em direção a formas de governo cada vez mais horizontais e descentralizadas; por outro lado, nutre-se a ilusão de que a transformação da ação dos Pontos em Lei proporcione (por si só) sua continuidade, quando na realidade essa dependerá das dinâmicas de movimento, ou seja da capacidade dos movimentos culturais de ampliar suas dinâmicas constituintes, fazendo-se governo!
No que diz respeito o desdobramento político e conceitual, é claro que estamos falando do horizonte do qual depende também a possibilidade de consolidação da política dos Pontos. Podemos resumir os desdobramentos possíveis em dois grandes eixos: o papel e a inserção da “cultura” no conjunto das atividades de governo; a qualificação política e social da política dos Pontos.
A política dos Pontos indica que a questão da cultura não se limita a uma especifica cadeia de valor (aquela da indústria ou economia da cultura) que seria cada vez mais importante, mas investe no conjunto das atividades econômicas, exatamente na medida que essas se tornam cada vez mais cognitivas e que, pois, seus processos de valoração se tornam imediatamente culturais.
Isso implica, por um lado, que os recursos orçamentários destinados aos Pontos – e mais em geral ao MinC – devem ser muito mais importantes e estruturais. Por outro lado, é preciso que a política dos Pontos seja vista como uma referência geral das políticas de mobilização produtiva dos territórios, pensando a algo como a um programa de Pontos de Trabalho Metropolitanos. A política dos Pontos deve articular-se com as políticas de distribuição de renda: Bolsa Família e Pontos de Cultura, esses dois horizontes devem convergir em novas políticas possíveis de radicalização democrática.
Em termos de qualificação, a política dos Pontos permite e demanda uma renovação conceitual adequada. Muitas vezes, as categorias e as noções mobilizadas no âmbito do próprio MinC dão conta apenas parcialmente do nível de inovação político-teórica que ela expressa e representa.
Por exemplo, a ênfase na diversidade cultural constitui um avanço importante com relação aos referenciais tradicionais de uma cultura nacional e homogênea, mas o pluralismo da “diversidade” não deixa de se manter numa perspectiva de identidades excludentes. Por diversas que elas sejam, as culturas não deixarão de constituir as peças de um mosaico (aquele do multiculturalismo e de seu governo .. da diversidade) de comunidades fechadas. Nada a ver com a realidade múltipla de movimentos culturais que funcionam por sampleamento e mixagem antropofágicos, bem como na experiência do tropicalismo, do funk carioca ou do tecnobrega paraense. Aquela dos Pontos é uma política do comum que reconhece a multiplicidade dos movimentos culturais: as múltiplas singularidades dos movimentos de resistência e criação passam, por meio e dentro da ação dos Pontos, a cooperar entre si, numa esfera política que não é nem aquela do mercado (privado) nem aquela do Estado (pública), mas aquela do comum: não por acaso, os Pontos são atravessados pelos temas da crítica da propriedade intelectual e do copyright!
Reencontramos aqui a dimensão paradigmática dos Pontos: trata-se de uma política do comum voltada ao reconhecimento da potência produtiva constituída pela multidão dos pobres, uma potência que tem como motor o amor: ou seja a própria dinâmica da produção cultural como produção de sentido e alegria. Na política do comum, a multidão dos pobres afirma sua potência e o devir-Brasil do mundo nos permite de pensar um devir-pobre do mundo, ou seja uma produção de riqueza cujo sentido é imanente às formas de cooperação e conhecimento (amor) entre as singularidades que se mantêm tais.
Giuseppe Cocco é professor titular da UFRJ e pesquisador do CNPq. Formado em ciências políticas, possui doutorado em História Social pela Universidade de Paris 1. Publicou vários livros, o último deles é MundoBraz: o Devir-Brasil do mundo e o devir-mundo do Brasil (Record 2009), com Antonio Negri publicou GlobAL: biopoder e luta em um América Latina globalizada (Record 2005), com Tarso Genro publicou Mundo Real (LP&M 2008). http://leituraglobal.com/929/

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